fonte: O Globo
Com achegada da Covid-19 ao Brasil em março, as unidades de saúde passaram adar prioridade aos pacientes infectados pelo novo coronavírus. Presidente do Colégio Brasileiro de Cirurgiões ( C BC ), Luiz Carlos Von Bah ten calcula que, durante a atual emergência sanitária, as restrições tenham atingido ao menos 70% das cirurgias, poupando apenas as de urgência e as classificadas como essenciais, como algumas de câncer. Diante dessa estimativa, no Estado do Rio, 10,7 mil intervenções eletivas deixaram de ser feitas na rede pública em abril e maio, se levada em consideração a média mensal de 7,7 mil internações para esses procedimentos registradas em 2018 e 2019 no Data sus, sistema de informações do Ministério da Saúde. No país, a que da é demais de cem mil.
Enquanto são batidos recordes de mortos pelo coronavírus, a paralisação de outros atendimentos contribui para que as filas não parem de crescer. Só no município do Rio, o portal do Sistema de Regulação Ambulatorial mostrava que, na última quinta-feira, havia 51.186 pacientes à espera por cirurgias eletivas e procedimentos diagnósticos invasivos. São pessoas que esperam desde a retirada das amígdalas e colonoscopias à reconstrução do crânio e amputações. As filas por procedimentos ligados à oncologia tinham 1.020 pessoas. As de biópsias, mais 617.
—A demanda reprimida é muito grande. Observamos que, mesmo onde já há um retorno desses atendimentos, os pacientes têm medo de ir aos hospitais. O desafio de organizar essa retomada será tão trabalhoso quanto o da própria pandemia — afirma Von Bahten.
Em março, quando foi declarada a pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), os dados mais atuais do Datasus já demonstravam o início desse impacto. No Estado do Rio, por exemplo, foram 5.900 internações para procedimentos cirúrgicos eletivos nas redes federal, estadual e municipal — bem abaixo dos 7,1 mil de fevereiro.
Asuspensãodaseletivastem prolongado o sofrimento de milhares de pessoas. Com um tumor no ovário e cinco miomas, há dias em que carioca Laurita Graça Arbelino, de 39 anos,nãoconsegueselevantar da cama, tamanhas as dores que sente. Durante a quarentena, hemorragias e cólicas insuportáveis agravaram seu sofrimento. Sozinha, de ônibus, Uber ou pedindo carona, nos últimos meses ela peregrinou por seis hospitais públicos do Rio e da Baixada Fluminense, na esperança de conseguir vaga para uma operação. Quando atendida, era medicada e mandada para casa. A justificativa era sempre a mesma: ela precisa continuar na fila, porque sua cirurgia é considerada eletiva e, neste momento, a prioridade é a Covid-19.
Em desespero, Laurita, que é cuidadora de idosos, chegou a criar uma “vaquinha” on-line para tentar arrecadar R$ 7 mil e realizar a cirurgia na rede privada, que também vem registradoumaquedaacentuada de procura por procedimentos. Na semana passada, no entanto, finalmente ela conseguiu um encaminhamento para o Hospital Moncorvo Filho, num instituto ligado à UFRJ. Mas ainda não poderá operar. Precisará, antes, tratar uma anemia grave que adquiriu.
— Embora eu esteja com uma barriga que pareça com a de uma mulher grávida, neste período perdi dez quilos. Além de tirar os miomas, preciso fazer uma biópsia no tumor do ovário. É essencial tratar dos pacientes com a Covid-19, mas, na minha jornada por hospitais, conheci mulheres em situação parecida com a minha, que também precisam de cuidados —diz Laurita.
REESTRUTURAÇÃO NO INCA
No Instituto Nacional do Câncer (Inca, onde são realizadas cerca de 500 cirurgias mensais), a pandemia obrigou a reestruturação do atendimento devido ao afastamento de profissionais que estão no grupo de risco ou com sintomas da doença e à reserva de áreas exclusivas para pacientes com suspeitas da Covid-19ecâncer—515atendimentos até a última quintafeira. Coordenador de assistência do instituto, o médico Gélcio Mendes afirma que esse quadro, em alguns momentos, levou ao bloqueio de 20% a 25% dos leitos.
Em meados de maio, o instituto decidiu submeter todos os candidatos a cirurgias ao teste da Covid-19. Para cerca da metade deles, o resultado tem sido positivo, o que surpreende Mendes.
— Esses fatores têm uma consequência negativa, como a redução de 30% a 40% das cirurgias do Inca. As que não podem esperar, como nos casos de câncer de estômago, são realizadas. Para as de tumores de evolução mais lenta, como o de próstata, avaliamos o quadro — afirma o médico
Em todo o Brasil, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO) calcula que sete em cada dez cirurgias de câncer foram suspensas, sendo mantidas só as dos tumores mais agressivos.
—Teremos que adaptar os serviços de saúde para retomar esses atendimentos suspensos. Temos incentivado, por exemplo, áreas “Covid-free” para câncer em hospitais — afirma o cirurgião oncológico Alexandre Ferreira Oliveira, presidente da SBCO.
No Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into), no Rio, cirurgias e consultas eletivas também precisaram ser adiadas, num total de dez mil atendimentos ambulatoriais postergados.
Para esse pós-pandemia, o CBC, junto com outras entidades médicas, elaborou uma série de recomendações e protocolos. A associação defende que a liberação das cirurgias eletivas não essenciais seja autorizada somente no momento em que a curva epidemiológica se mostre decrescente.
—Não há uma regra para o Brasil inteiro. É preciso avaliar a realidade de cada lugar. Onde a pandemia está em atividade, incluindo o Rio, as restrições deveriam ser mantidas —afirma Von Bahten.
No Estado do Rio, porém, a Secretaria de Saúde afirma que, diante de uma redução na filadeesperaporleitosdeUTI, em breve, pacientes com Covid-19 vão começar a ser transferidos de hospitais regulares especializados para as unidades de campanha, que ainda estão sendo montadas para atender as vítimas da pandemia. “Desta forma, os serviços serão devolvidos à população de forma gradativa, como, por exemplo, o Hospital do Cérebro, que já tem dois andares livres”, diz o texto.
Já a Secretaria municipal de Saúde afirma que as cirurgias eletivas voltarão a ser marcadas a partir do dia 16, priorizando as com maior urgência, com um esforço para que os casos sejam atendidos dentro do menor prazo.